São Bernardo (Graciliano Ramos)

  • São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro. Narrado em primeira pessoa, é curto, direto e bruto. Poucos, como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos; e esta força parece provir da sólida unidade que o autor lhe imprimiu. As personagens e as coisas surgem como meras modalidades do narrador, Paulo Honório. ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira patogênese desse sentimento.
  • De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando atingir o seu alvo por todos os meios.
  • O teu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular.
  • É um homem que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em dois grupos: os eleitos que têm e respeitam os bens materiais, e os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.
  • Daí resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica, De fato, não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida ou morte.
  • “A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-lo sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operaçôes embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas”.
  • O próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos números não há lugar para o luxo do desinteresse.
  • “(...) esperneei nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois, vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo, deixei-o de tanga”.
  • “(...) levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos”.
  • Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão, recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com uma espécie de ternura de que é capaz. Ainda assim, porém, as relações afetivas só se concretizam numericamente:
  • “A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu”.
  • Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta: “A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro”.
  • Até quando escreve, a sua estética é a da poupança: “É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço”.
  • A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam, todavia, o instinto de posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as coisas.
  • “Amanheci um dia pensando em casar Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo”.
  • A partir desse momento, instalam-se na sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro.
  • Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado, casando-se por amor; e o amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens, revela-se, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O sentimento de propriedade, acarretando o de segregação dos homens, o distancia das pessoas, porque origina o medo de perder o que já conquistou, e o seu convívio com outros resume-se em relações de mera concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher - humanitária, mão-aberta -, não concebe a vida como uma relação de possuidor e coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de participar na vida dos desvalidos.
  • Nessa luta, porém, não há vencedores. Acuada, vencida, Madalena suicida-se. Paulo Honório, vitorioso, de uma maneira que não esperava e não queria, sente, no admirável capítulo XXXVI, a inutilidade do violento esforço da sua vida:
  • “Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...) Quanto às vantagens restantes — casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. - é preciso convir em que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada (...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo”.
  • Vencendo a vida, porém, foi de certo modo vencido por ela; imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer. Nesse estudo patológico de um sentimento, Graciliano Ramos - juntando mais um dado à psicologia materialista esposada em Caetés - parte do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ter e de pensar:
  • “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também uma conseqüência da profissão”.
  • “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”.
  • O seu caso é dramático, porque há fissuras de sensibilidade que a vida não conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia desse homem, cujos sentimentos eram relativamente bons, quando escapavam à sua tirania, ao descobrir em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é preciso abafar a todo custo.
  • “Emoções indefiníveis me agitam — inquietação terrível, desejo de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração”.
Enredo

  • Paulo Honório, homem dotado de vontade férrea e da ambição de se tornar fazendeiro, depois de atingir seu objetivo, propõe-se a escrever um livro, contando a sua vida, de guia de cego a senhor da Fazenda São Bernardo.
  • Movido mais por uma imposição psicológica, Paulo Honório procura uma justificativa para o desmoronamento da sua vida e do seu fracassado casamento com Madalena, que se suicida.
  • No livro, ao mesmo tempo em que faz o levantarnento existencial de uma vida dedicada à construção da Fazenda São Bernardo, Graciliano Ramos desnuda o complexo destrutivo que Paulo Honório representa: “Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber por quê! Comer e dormir como um porco! Como um pomo! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo”?

Análise da obra

  • Publicado em 1934, São Bernardo está entre o que de melhor o romance brasileiro produziu. Num primeiro instante pode até parecer uma história de vitória de seu narrador-protagonista, Paulo Honório, que foi de guia de cego na infância até se tornar latifundiário do interior de Alagoas. No entanto, a questão principal é muito mais aguda e amarga.
  • Para alcançar sua ascensão social, o narrador paga um preço altíssimo, que é a destruição do seu caráter afetivo. Na verdade, a perda de sua humanidade pode ser entendida como fruto do meio em que vivia. Massacrado por seu mundo, acaba tornando-se um herói problemático, defeituoso (parece haver aqui um certo determinismo, na medida em que o homem seria apresentado como fruto e prisioneiro das condições mesológicas).
  • Há um aspecto que atenta contra a sua verossimilhança, que é um célebre problema de incoerência: como um romance tão bem escrito como pôde ter sido produzido por um semi-analfabeto como Paulo Honório. É uma narrativa muito sofisticada para um narrador de caráter tão tosco.
  • Quando se menciona que a narrativa é sofisticada, não se quer dizer que haja rebuscamento. A linguagem do romance, seguindo o estilo de Graciliano Ramos, é extremamente econômica, enxuta, mas densa de beleza.
  • Outra beleza pode ser percebida pela maneira como o tempo é trabalhado. Há o tempo do enunciado (a história em si, os fatos narrados) e o tempo da enunciação (o ato de narrar, de contar a história). O primeiro é pretérito. O segundo é presente. Mas há momentos magistrais, como os capítulos 19 e 36, em que, em meio à perturbação psicológica em que se encontra o narrador, os dois acabam-se misturando.
  • Todos esses elementos, portanto, fazem de São Bernardo uma obra do mais alto quilate, facilmente colocada entre os cinco melhores romances de nossa literatura.
  • São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro. Narrado em primeira pessoa, é curto, direto e bruto. Poucos, como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos; e esta força parece provir da sólida unidade que o autor lhe imprimiu. As personagens e as coisas surgem como meras modalidades do narrador, Paulo Honório. ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira patogênese desse sentimento.
  • De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando atingir o seu alvo por todos os meios.
  • O teu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular.
  • É um homem que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em dois grupos: os eleitos que têm e respeitam os bens materiais, e os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.
  • Daí resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica, De fato, não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida ou morte.
  • “A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-lo sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operaçôes embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas”.
  • O próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos números não há lugar para o luxo do desinteresse.
  • “(...) esperneei nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois, vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo, deixei-o de tanga”.
  • “(...) levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos”.
  • Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão, recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com uma espécie de ternura de que é capaz. Ainda assim, porém, as relações afetivas só se concretizam numericamente:
  • “A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu”
  • Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta: “A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro”.
  • Até quando escreve, a sua estética é a da poupança: “É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço”.
  • A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam, todavia, o instinto de posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as coisas.
  • “Amanheci um dia pensando em casar Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo”.
  • A partir desse momento, instalam-se na sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro.
  • Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado, casando-se por amor; e o amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens, revela-se, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O sentimento de propriedade, acarretando o de segregação dos homens, o distancia das pessoas, porque origina o medo de perder o que já conquistou, e o seu convívio com outros resume-se em relações de mera concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher - humanitária, mão-aberta -, não concebe a vida como uma relação de possuidor e coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de participar na vida dos desvalidos.
  • Nessa luta, porém, não há vencedores. Acuada, vencida, Madalena suicida-se. Paulo Honório, vitorioso, de uma maneira que não esperava e não queria, sente, no admirável capítulo XXXVI, a inutilidade do violento esforço da sua vida:
  • “Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...) Quanto às vantagens restantes — casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. - é preciso convir em que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada (...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo”.
  • Vencendo a vida, porém, foi de certo modo vencido por ela; imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer. Nesse estudo patológico de um sentimento, Graciliano Ramos - juntando mais um dado à psicologia materialista esposada em Caetés - parte do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ter e de pensar:
  • “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também uma conseqüência da profissão”.
  • “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”.
  • O seu caso é dramático, porque há fissuras de sensibilidade que a vida não conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia desse homem, cujos sentimentos eram relativamente bons, quando escapavam à sua tirania, ao descobrir em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é preciso abafar a todo custo.
  • “Emoções indefiníveis me agitam — inquietação terrível, desejo de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração”.