O Cemitério dos Vivos (Lima Barreto)


Sob a estética do Pré-Modernismo, analiso a obra Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto, estabelecendo relações dessa com História da Loucura, de Michel Foucault.
Em Cemitério dos Vivos é relatada a vida (desde os quase 20 anos de idade) de Vicente Mascarenhas que conhece, no hotel em que estava hospedado, no Rio de Janeiro, a propósito de seus estudos, a filha da dona do lugar, Efigênia. Entre muitos fatos e detalhes narrados, é evidenciado que, por uma questão de acomodação, casa-se com Efigênia. Assim, muitas foram as dificuldades e as dívidas nessa relação, se é que podemos chamar, amorosa. Mascarenhas somente dá a valorização devida e sente falta da esposa após essa ter falecido. O filho do casal, com 4 anos de idade, tinha problemas mentais e o pai, entrega-se ao alcoolismo. No natal de 1919, Mascarenhas foi internado em um hospital psiquiátrico. Este livro retrata, ora uma tragédia pessoal (a vivência no hospício), ora uma tragédia familiar (casamento sem valor diante de seus olhos). Bosi (1997) esclarece que a obra compilada postumamente, divide-se em duas partes: a primeira, o diário do escritor, respectivo ao casarão da Praia Vermelha; a segunda, o romance, esboçando a tragédia doméstica  com fragmentos alternados entre suas memórias no hospício. Duplamente interessante isto: primeiro, porque ratifica a tragédia do personagem Mascarenhas e, em segundo lugar, porque, atento para o termo do escritor, ou seja, a obra possui um caráter biográfico - autobiográfico - na medida em que está, o próprio Lima Barreto, falando de sua vida. Nessa proporção, tem-se ainda Diário Íntimo, também um livro de memórias, de observações pessoais e que, em hipótese alguma, almejava ser publicado, bem como as tiras de papel escritas no hospício, por vezes a lápis, outras à tinta de Cemitério dos Vivos - ambos guardados na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional e publicados em 1956.  O livro trata das lembranças vivenciadas que Mascarenhas vai relatando. Inicia-se com a explicação de que ele está num hospício (um tempo presentificado por seu narrador-protagonista) e, após, o relato de lembranças, fatos e acontecimentos, tanto dentro, quanto fora do hospício (dados em um tempo passado até o final do texto). Sob o ponto de vista da biblioteca, faço menção a um ponto de suma importância no desenrolar da obra que unirá as duas pontas dessa obra de Lima Barreto e da obra de Foucault, História da Loucura. Ao longo de toda a narrativa, Cemitério dos Vivos, evidencio o quanto Mascarenhas adora o prazer da leitura. Dessa maneira, é em Foucault que posso ratificar a significação que o universo do personagem-protagonista possui, especificamente, quando enfatiza que a civilização desenvolve a loucura. O narrador possui fascínio por suas leituras. Com base em Foucault (1972), certamente, é muito fina e tênue a película que separa a in sanidade e a sabedoria. Acredito, fielmente, na possibilidade de qualquer processo em excesso causar danos. Assim é com a paixão - seja qual for seu objeto. Este personagem possui um grande interesse por viver um mundo fantasioso: o da leitura - assim como o próprio Barreto!

Na obra, Barreto faz referência à deusa Ísis - deusa mitológica egípcia - que conquistou não só o vale do Rio Nilo em uma país afortunado, mas também todas as nações através de sua eloqüência  persuadindo e comovendo por meio de palavras. Nesse sentido, constato como foi bem escolhida a deusa, pois o autor, um apaixonado pelas rodas literárias e pela academia, busca uma figura que, assim como ele, ratifica o amor pelas letras e pelas palavras. Barreto expõe como ninguém a sociedade que o circundava. Dessa forma, Cemitério dos Vivos foi uma obra cujas páginas expressavam sua pura rebeldia intelectual. Assim, concluo que Barreto, por meio das experiências vivenciadas no hospício tratou de relatá-las sob a voz de um personagem que, assim como ele apresenta-se marginalizado, estigmatizado e, por fim, tido como louco. Durante toda a diérese existem as marcas de uma sociedade que se mostra rotuladora da sanidade e insanidade dos outros: do que é certo e do que é errado. Junto a isso, evidencio, ainda, no convívio de Barreto no hospício, que as diferenças econômicas - das classes sociais - são gritantes e, também, permeiam toda a narrativa, bem como as hierarquias. Afinal, no que diz respeito a essas últimas, além dos diferentes níveis sociais - pobres e ricos no hospício -, existe também a hierarquia da categorização dessas pessoas - pensionistas, crianças, mulheres - e das que trabalham no local. Para finalizar, em relação a uma perspectiva de Brasil, percebo que o desfecho da obra é inacabado e, em sua cena final há o trecho em que ele revela ter ficado só, à janela. Estar só no vão da janela, aponta para uma situação de  passividade, de não ter o que se fazer, de falta de expectativa e, assim, de perspectiva em relação ao Brasil. Essa questão aponta diretamente para todas as mudanças que já estavam ocorrendo com a Semana de Arte Moderna. Dessa maneira, o que Lima Barreto faz em sua obra é abrir espaço para que seja conhecido o mundo tão estigmatizado dos loucos, não deixando, também, de estar fazendo uma crítica ao sistema carcerário dos hospícios pelo modo como tratam seus internos. Lima Barreto desvela o mundo dos loucos e, assim, antecipando o Modernismo, inclui indivíduos tão excluídos - não em relação racial, mas em relação à sociedade - cumprindo, assim, seu papel principal: agredí-la!